O OSSO, A TRÍADE E O COERENTISMO
Às vezes o jogo dialético funciona tão bem que a gente tem a tentação de aplicar a conhecida tríade Tese-Antítese-Síntese indiscriminadamente, até àquele osso encontrado no chão, para lembrar a brincadeira de um filósofo¹.
Mas aqui ela realmente cai muito bem.
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Figura²

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O coerentismo é, de fato, a síntese estrita de fundacionismo e infinitismo em teoria da justificação, ramo quase exaustivamente explorado pela assim-chamada epistemologia analítica.
O fundacionismo termina refém da parada arbitrária ou dogmática no processo de justificação, quer dizer, ele faz com que toda a argumentação dependa da suposta verdade das premissas, mas é incapaz de prová-las.
O infinitismo, a face contrária da posição fundacionista, nega que se deva ou se possa parar em qualquer ponto da cadeia de prova, postulando-o como o seu princípio indubitável. A argumentação segue os seus passos ad infinitum, e o infinitista não vê nenhum problema nisto.
Mas há dois problemas claros aí. O primeiro: um processo infinito de prova não prova nada; o segundo: o resultado do infinitismo é uma espécie de achatamento dos pensamentos, como se todos tivessem o mesmo peso probante no conjunto de uma teoria ou de um vasto campo teórico.
De fato, assim como o fundacionismo corresponde estritamente ao momento positivo ou dogmático da Tese, com sua busca por uma base segura e imutável do conhecimento, a ênfase infinitista no momento meramente negativo ou cético da razão (a Antítese) conduziria, ao natural, à inviabilidade da própria racionalidade científica.
Não é assim que funciona, no entanto, o pensamento e não é desse modo que produzimos as boas teorias: alguns pensamentos são mais importantes do que outros, porque mais centrais, enquanto outros são mais periféricos em dado sistema teórico.
O coerentismo supera e guarda³ as duas posições rivais na teoria da justificação, como a sua síntese viável.
Nega do fundacionismo a ideia de pensamento fundante, certo e indubitável, mas aceita dele a posição de que há pensamentos mais relevantes do que outros, porque as redes semânticas que constituem as teorias apresentam alguns conceitos ou proposições como mais centrais do que outros, os chamados nós centrais (ou hubs) na teoria de redes.
Se não é possível visualizá-los em um grafo, é fácil acessar estes pensamentos nucleares por via negativa: quanto maior a sua centralidade, mais destrutiva para o sistema será a prova de sua falsidade. Esta diferença aparece no contraste entre núcleo e periferia na teoria dos programas de pesquisa do Lakatos. O centro ou o núcleo, ou os variados nós relevantes de uma teoria ou de todo um paradigma, como diria Kuhn, são o análogo coerentista da noção de fundamento, mas não são um ponto fixo, nem imune à crítica.
As redes semânticas são dinâmicas, e nada impede que certos conceitos nucleares se tornem periféricos, e conceitos periféricos se tornem nucleares em momentos distintos da história de um vasto programa de pesquisa.
Por outro lado, do infinitismo o coerentismo nega o regresso ao infinito, aquele enigmático e insustentável "não provar nada", bem como o “achatamento” de pensamentos, mas guarda o potencialmente infinito processo de prova ao afirmar a validade da alguns tipos de circularidades, as boas circularidades*, que só são boas porque mediadas por contingência, quer dizer, porque sempre novamente abertas à refutação.
Bom, é exatamente este o modo como o processo de prova em ciência ocorre segundo os modelos defendidos por Kuhn e Lakatos, mais este do que aquele, ao transmudar o falibilismo fundacionista popperiano em um falibilismo coerentista.
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¹ Eu estava tentado a atribuir esta brincadeira ao E. von Hartmann (https://en.wikipedia.org/wiki/Eduard_von_Hartmann), mas não encontrei a fonte, perguntei à nossa amiga Perplexity (https://www.perplexity.ai/) e, como boa sofista, ela foi inventando nomes; quando chegou no terceiro chute, larguei de mão.
² Imagem extraída do Mapa do Projeto de Sistema (https://bra.in/5pd8KJ).
³ O Aufheben ou superar e guardar dos hegelianos: em vez de simplesmente rejeitar um dos opostos em conflito (no caso, fundacionismo ou infinitismo) e aceitar o outro, busca-se corrigir falhas em cada um deles e encontrar a sua conciliação possível.
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As boas circularidades pressupõem contingência.
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