Fiat Lux⚡️🔐🐧🔎 on Nostr: "Naturalmente, a reação da grande mídia é desprezar a internet. Tome-se o caso de ...
"Naturalmente, a reação da grande mídia é desprezar a internet. Tome-se o caso de um site da internet que tenha dez vezes mais leitores que o "New York Times": este vai se sentir mais importante pela sua antiguidade e certamente não vai ceder a sua autoridade de uma maneira tão fácil.
Mas acontece que no Brasil está sendo perdida a oportunidade de se livrar dessa camisa de força da mídia justamente por falta de referências. As referências que aparecem na internet são exatamente as que aparecem na mídia. As pessoas julgam as coisas com a mesma cabeça com que julgariam os leitores de "O Globo", os expectadores da "TV Globo", os leitores da "Folha" [de São Paulo] etc. Sobretudo, as referências intelectuais são exatamente as mesmas que aparecem na mídia. Isso é fantástico. Como não se tem publicações culturais, literárias, científicas e filosóficas em número suficiente para constituir um debate intelectual no sentido próprio do termo, o que sobra de debate intelectual público ocorre através da grande mídia.
Aqui [nos Estados Unidos] não é assim: cada grupo de intelectuais tem a sua revista, o seu "journal", que entre os americanos corresponderia aproximadamente à nossa revista acadêmica. Aqui há milhares e milhares dessas revistas, cada uma expressando a visão de mundo mais ou menos “inorganizada” de determinados grupos.
Então [aqui nos Estados Unidos] se pode falar de um debate intelectual e de um debate midiático. No Brasil não existe isso. O Brasil só possui o debate midiático. Portanto, o que pode haver de debate cultural aparece também na mídia.
As referências, então, que possuem os jovens [brasileiros] hoje são duas: seus professores universitários e os colunistas de mídia, sendo que a cabeça dos primeiros “é feita” pelos segundos. No conjunto, a coisa é de uma pobreza que, aqui, eu tenho dificuldade de descrever a um americano. Se eu disser para um americano: “Não há nenhuma revista cultural de grande projeção no Brasil, que exerça uma influência pública”, ele irá achar que eu estou exagerando, que isso não é possível.
O fenômeno das revistas culturais de curta duração perpassa toda a história brasileira. Criam-se centenas de revistas culturais que não sobrevivem e logo acabam.
Vamos partir do seguinte princípio: não existe debate cultural no Brasil. Não existe alta-cultura. Basta fazer uma conta. Se você notar a cultura dos anos 50 e 60, verá que nessa época havia vivos, atuando ao mesmo tempo, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Nelson Rodrigues, Graciliano Ramos, Marques Rebêlo, Herberto Sales, José Geraldo Vieira. Era uma infinidade de bons escritores. A literatura brasileira podia concorrer com qualquer do mundo em qualidade. Sob certos aspectos, há obras nacionais que eu acho que transcendem qualquer coisa publicada naquele período. Por exemplo, o Mário Ferreira, que estava vivo nessa época. Só na filosofia havia o Mário Ferreira, o Vicente Ferreira da Silva, o Villém Flusser, o Miguel Reale, além de um círculo enorme de gente discutindo as suas obras.
Hoje não há realmente mais nada. Nada, nada. Hoje, quando tenho a oportunidade — como eu tive esta semana — de discutir com o Oliveiros da Silva Ferreira, dá até um “orgasmo”, porque normalmente eu tenho que discutir é o com o Luis Fernando Veríssimo, o Emir Sader. É um pessoal que dá até dó. Note: não é assim porque eu seja um sujeito superior... Eu, nos Estados Unidos, sou um intelectual de um certo nível. Mas aqui há um monte de pessoas parecidas comigo, que me entendem, com as quais dá para dialogar. Há um monte de pares.
No Brasil não há pares. No Brasil eu sou um sujeito ímpar. Entre eu e o segundo mais inteligente há uma distância abismal. Quer dizer, eu não tenho com quem discutir no Brasil. Este é o problema, não há nada para discutir. Você mostrar que um sujeito é analfabeto, ignorante, que ele não entende nada ou está gagá não é discutir. Discutir pressupõe que eu tenha uma idéia e um sujeito tenha outra idéia.
Quanto a essa imensa parte dos meus escritos que dizem ser de polêmica: o caso não é propriamente esse. Polêmica é sempre uma luta de idéias. Mas eu nunca tive ocasião de refutar uma única idéia no Brasil. Nunca aconteceu isso. Que idéia esses “camaradas” têm? Não têm idéia nenhuma. Uma coisa é você ter uma idéia, uma concepção da realidade, a qual pode ser mais próxima ou menos à de outro, mais parecida ou menos com a dos demais. Outra coisa — esta, completamente diferente — é você estar apenas expressando em palavras o seu próprio estado de alienação, de miséria intelectual, de terror-pânico, de suspeitas malignas; a sua doença, enfim; a sua neurose. Neste caso, não há o que discutir; há apenas o que descrever e, ás vezes, o que denunciar, porque é este um estado de coisas que raia o criminoso.
Ninguém venha me dizer que o livro "O Imbecil Coletivo" é de polêmica. Quem diz isso são os personagens do livro, porque gostariam que fosse este de polêmica. Isso os honraria. Eles estão fingindo uma polêmica para fingir que houve uma discussão de idéias. Jamais houve uma discussão de idéias. Infelizmente.
Eu tenho um amigo aqui, o John Raskins, com quem travo diariamente uma discussão de idéias com por telefone. Diariamente. Aparecem mais idéias em uma conversa com ele do que eu encontrei no Brasil durante todo o período da minha atividade jornalística aí. O John Haskins é um cara próximo do grupo do Alan Keyes, o qual, infelizmente, é uma pessoa muito ocupada; não dá para a gente conversar toda hora, como gostaríamos. Então, eu tenho minhas idéias, o John tem as dele e dá para a gente, como se diz, “trocar umas idéias”. Dá até para fazer uma polêmica. Mas isso, no Brasil, não é possível.
Gente, eu nunca vou deixar de enfatizar isto: vocês têm que entender que estão em um lugar anormal, que isso aí não é um país, que isso aí é um hospício. É um negócio que está fora da realidade intelectual do mundo. É um fenômeno de doença, de baixeza, de estupidez consagrada como nunca se viu na história humana. Um país desse tamanho, com tanta incapacidade intelectual consagrada, não existe. Por isso a única solução para aqueles que querem levar uma vida de estudos é conquistar outra referência cultural completa.
É como se a sua situação fosse a de um índio que tivesse nascido dentro de uma tribo e tivesse que adquirir a cultura de uma civilização imensamente maior, milenar, sem sair da sua tribo. Quer dizer, o índio precisaria ter internet, naturalmente. Se não fosse esta última vocês estariam perdidos. Não haveria saída."
Olavo de Carvalho
Published at
2024-08-12 23:39:09Event JSON
{
"id": "53fb68d75c734aea8678325a72c76685f82248328e0567de36dcb0ac776a4bed",
"pubkey": "0f42c61e64468fbf45ddcc78aa7d86751c912aeb08ade91e82392688980064d6",
"created_at": 1723505949,
"kind": 1,
"tags": [],
"content": "\"Naturalmente, a reação da grande mídia é desprezar a internet. Tome-se o caso de um site da internet que tenha dez vezes mais leitores que o \"New York Times\": este vai se sentir mais importante pela sua antiguidade e certamente não vai ceder a sua autoridade de uma maneira tão fácil.\n\nMas acontece que no Brasil está sendo perdida a oportunidade de se livrar dessa camisa de força da mídia justamente por falta de referências. As referências que aparecem na internet são exatamente as que aparecem na mídia. As pessoas julgam as coisas com a mesma cabeça com que julgariam os leitores de \"O Globo\", os expectadores da \"TV Globo\", os leitores da \"Folha\" [de São Paulo] etc. Sobretudo, as referências intelectuais são exatamente as mesmas que aparecem na mídia. Isso é fantástico. Como não se tem publicações culturais, literárias, científicas e filosóficas em número suficiente para constituir um debate intelectual no sentido próprio do termo, o que sobra de debate intelectual público ocorre através da grande mídia.\n\nAqui [nos Estados Unidos] não é assim: cada grupo de intelectuais tem a sua revista, o seu \"journal\", que entre os americanos corresponderia aproximadamente à nossa revista acadêmica. Aqui há milhares e milhares dessas revistas, cada uma expressando a visão de mundo mais ou menos “inorganizada” de determinados grupos.\n\nEntão [aqui nos Estados Unidos] se pode falar de um debate intelectual e de um debate midiático. No Brasil não existe isso. O Brasil só possui o debate midiático. Portanto, o que pode haver de debate cultural aparece também na mídia.\n\nAs referências, então, que possuem os jovens [brasileiros] hoje são duas: seus professores universitários e os colunistas de mídia, sendo que a cabeça dos primeiros “é feita” pelos segundos. No conjunto, a coisa é de uma pobreza que, aqui, eu tenho dificuldade de descrever a um americano. Se eu disser para um americano: “Não há nenhuma revista cultural de grande projeção no Brasil, que exerça uma influência pública”, ele irá achar que eu estou exagerando, que isso não é possível.\n\nO fenômeno das revistas culturais de curta duração perpassa toda a história brasileira. Criam-se centenas de revistas culturais que não sobrevivem e logo acabam.\n\nVamos partir do seguinte princípio: não existe debate cultural no Brasil. Não existe alta-cultura. Basta fazer uma conta. Se você notar a cultura dos anos 50 e 60, verá que nessa época havia vivos, atuando ao mesmo tempo, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Nelson Rodrigues, Graciliano Ramos, Marques Rebêlo, Herberto Sales, José Geraldo Vieira. Era uma infinidade de bons escritores. A literatura brasileira podia concorrer com qualquer do mundo em qualidade. Sob certos aspectos, há obras nacionais que eu acho que transcendem qualquer coisa publicada naquele período. Por exemplo, o Mário Ferreira, que estava vivo nessa época. Só na filosofia havia o Mário Ferreira, o Vicente Ferreira da Silva, o Villém Flusser, o Miguel Reale, além de um círculo enorme de gente discutindo as suas obras.\n\nHoje não há realmente mais nada. Nada, nada. Hoje, quando tenho a oportunidade — como eu tive esta semana — de discutir com o Oliveiros da Silva Ferreira, dá até um “orgasmo”, porque normalmente eu tenho que discutir é o com o Luis Fernando Veríssimo, o Emir Sader. É um pessoal que dá até dó. Note: não é assim porque eu seja um sujeito superior... Eu, nos Estados Unidos, sou um intelectual de um certo nível. Mas aqui há um monte de pessoas parecidas comigo, que me entendem, com as quais dá para dialogar. Há um monte de pares.\n\nNo Brasil não há pares. No Brasil eu sou um sujeito ímpar. Entre eu e o segundo mais inteligente há uma distância abismal. Quer dizer, eu não tenho com quem discutir no Brasil. Este é o problema, não há nada para discutir. Você mostrar que um sujeito é analfabeto, ignorante, que ele não entende nada ou está gagá não é discutir. Discutir pressupõe que eu tenha uma idéia e um sujeito tenha outra idéia.\n\nQuanto a essa imensa parte dos meus escritos que dizem ser de polêmica: o caso não é propriamente esse. Polêmica é sempre uma luta de idéias. Mas eu nunca tive ocasião de refutar uma única idéia no Brasil. Nunca aconteceu isso. Que idéia esses “camaradas” têm? Não têm idéia nenhuma. Uma coisa é você ter uma idéia, uma concepção da realidade, a qual pode ser mais próxima ou menos à de outro, mais parecida ou menos com a dos demais. Outra coisa — esta, completamente diferente — é você estar apenas expressando em palavras o seu próprio estado de alienação, de miséria intelectual, de terror-pânico, de suspeitas malignas; a sua doença, enfim; a sua neurose. Neste caso, não há o que discutir; há apenas o que descrever e, ás vezes, o que denunciar, porque é este um estado de coisas que raia o criminoso.\n\nNinguém venha me dizer que o livro \"O Imbecil Coletivo\" é de polêmica. Quem diz isso são os personagens do livro, porque gostariam que fosse este de polêmica. Isso os honraria. Eles estão fingindo uma polêmica para fingir que houve uma discussão de idéias. Jamais houve uma discussão de idéias. Infelizmente.\n\nEu tenho um amigo aqui, o John Raskins, com quem travo diariamente uma discussão de idéias com por telefone. Diariamente. Aparecem mais idéias em uma conversa com ele do que eu encontrei no Brasil durante todo o período da minha atividade jornalística aí. O John Haskins é um cara próximo do grupo do Alan Keyes, o qual, infelizmente, é uma pessoa muito ocupada; não dá para a gente conversar toda hora, como gostaríamos. Então, eu tenho minhas idéias, o John tem as dele e dá para a gente, como se diz, “trocar umas idéias”. Dá até para fazer uma polêmica. Mas isso, no Brasil, não é possível.\n\nGente, eu nunca vou deixar de enfatizar isto: vocês têm que entender que estão em um lugar anormal, que isso aí não é um país, que isso aí é um hospício. É um negócio que está fora da realidade intelectual do mundo. É um fenômeno de doença, de baixeza, de estupidez consagrada como nunca se viu na história humana. Um país desse tamanho, com tanta incapacidade intelectual consagrada, não existe. Por isso a única solução para aqueles que querem levar uma vida de estudos é conquistar outra referência cultural completa.\n\nÉ como se a sua situação fosse a de um índio que tivesse nascido dentro de uma tribo e tivesse que adquirir a cultura de uma civilização imensamente maior, milenar, sem sair da sua tribo. Quer dizer, o índio precisaria ter internet, naturalmente. Se não fosse esta última vocês estariam perdidos. Não haveria saída.\"\n\nOlavo de Carvalho",
"sig": "f2cfa72da747143f8b4fc89b294c0ea976583bb6ac58b434e06e17ba05d68327cc9a3a5cdc31828a983eab2ae2f6a7bf7270b6a3f22f0e2319ae5cad0fa13501"
}